quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Crônica: Por que nos envergonhamos da essência de nossa brasilidade?


Somos internacionalmente conhecidos como um povo festeiro, animado, aberto e receptivo. Mas por que o senso comum do brasileiro de classe média ainda se envergonha de tudo aquilo que evoca excessiva brasilidade? O pinguim em cima da geladeira, os panos de prato bordados com dias da semana, o tapetinho embaixo do telefone, as combinações inusitadas de cores primárias, a música dos artistas populares – cruelmente estigmatizados como bregas, ainda que com legiões de fãs e seguidores.

Complexo de vira-lata foi o termo cunhado por Nelson Rodrigues para denotar a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo – em vários setores: do esporte às artes; da política ao estilo de vida.

Foi preciso uma campanha publicitária forte, onerosa e bem engendrada para tornar as brasileiríssimas sandálias Havaianas um produto digno de orgulho nacional. O então “chinelo de pobre” há mais de uma década frequenta pés macios e nada calejados, inclusive pisando solos estrangeiros.

Foi preciso um nobre e revolucionário Caetano Veloso regravar “Sonhos”, em 1982, e “Sozinho”, em 1998, do dito compositor brega Peninha, para que as castas médias e altas pudessem admitir gostar de canções que já haviam sido hits populares – respectivamente em 1977 e 1996. Outro choque de estilos como esse havia sido promovido pelo mesmo Caetano no Festival “Phono 73”, evento da gravadora Phonogram. Ao subir no palco do Centro de Convenções do Anhembi, em São Paulo, junto de Odair José, Caetano provocou a fúria e a vaia dos puristas da MPB ao entoar “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”. Odair José e Caetano Veloso, por sinal, pertenciam a uma mesma gravadora, mas eram de selos diferentes. O primeiro era da Polydor, divisão popular da companhia; o segundo, da Philips, a etiqueta nobre daquele grupo fonográfico  hoje Universal Music.

Para desespero daqueles que se envergonham da brasilidade em sua forma mais bruta, um fato a ser digerido: dificilmente a cúpula da Phonogram permitiria que Caetano fizesse tantos discos experimentais – e pouco vendáveis – na década de 70 se não houvesse em seu caixa o giro trazido por seus artistas populares. Além de Odair José: Evaldo Braga, José Ribeiro, Marcus Pitter, Sidney Magal e outros mais.

Caetano Veloso proporia ainda novo embate estilístico regravando a dramática “Você Não Me Ensinou a Te Esquecer” – de Fernando Mendes, José Wilson e Lucas – para a trilha sonora do filme “Lisbela e o Prisioneiro”, de 2003. A versão de Caetano renderia louros de público e crítica, além de uma inesperada indicação ao Grammy Latino na categoria “Melhor Canção Brasileira”, vinte e cinco anos após o lançamento da canção pelo próprio Fernando Mendes.

Um artista tido como elitizado e consagrado precisa de uma boa dose de pioneirismo e vanguardismo para colocar a mão na essência de nossa brasilidade, da qual muitas vezes nos envergonhamos e queremos esconder embaixo da cama – tal qual fazíamos com nossas Havaianas até antes de elas se tornarem quase tão nobres quanto o sapatinho de cristal da Cinderela.

No barco do pioneirismo de Caetano Veloso embarcariam tantos outros artistas. Adriana Calcanhotto regravaria “Fico Assim Sem Você” de Claudinho e Buchecha (sic) com grande êxito entre os mais distintos públicos. Paula Toller e também João Donato fariam suas versões para “Só Love”, do mesmo duo carioca. Filipe Catto regravaria “Garçom”, de Reginaldo Rossi, com grande enlevo e erudição. Maria Gadú faria “Baba Baby”, hit de Kelly Key, virar um clássico blue. A banda indie Vanguart recém-regravou “Beijinho no Ombro”, de Valesca Popozuda, também apostando em verter para o universo cult um hit popular.

Faça esta experiência, se tiver coragem: promova uma festa, convide alguns amigos metidos e contrate um DJ para tocar o fino das pistas europeias e norte-americanas por algumas horas. Lá pelas tantas da madrugada, quando todos estiverem sorumbáticos e fechados em seus nichos, peça ao tal DJ para tocar “Sandra Rosa Madalena”, com Sidney Magal, ou mesmo “Fogo e Paixão” de Wando. Você verá a brasilidade desabrochar das almas mais resistentes e contagiar o senso comum de seus nobres convidados. Sua festa renascerá tal qual uma fênix das cinzas. Garanto! Futucando bem, acham-se pinguins e bordados de crochê ao redor dos corações de todos os brasileiros.