Somos
internacionalmente conhecidos como um povo festeiro, animado, aberto e
receptivo. Mas por que o senso comum do brasileiro de classe média ainda se envergonha
de tudo aquilo que evoca excessiva brasilidade? O pinguim em cima da geladeira,
os panos de prato bordados com dias da semana, o tapetinho embaixo do telefone,
as combinações inusitadas de cores primárias, a música dos artistas populares –
cruelmente estigmatizados como bregas, ainda que com legiões de fãs e
seguidores.
Complexo de
vira-lata foi o termo cunhado por Nelson Rodrigues para denotar a inferioridade
em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo – em vários
setores: do esporte às artes; da política ao estilo de vida.
Foi preciso
uma campanha publicitária forte, onerosa e bem engendrada para tornar as brasileiríssimas
sandálias Havaianas um produto digno de orgulho nacional. O então “chinelo de
pobre” há mais de uma década frequenta pés macios e nada calejados, inclusive
pisando solos estrangeiros.
Foi preciso um
nobre e revolucionário Caetano Veloso regravar “Sonhos”, em 1982, e “Sozinho”, em
1998, do dito compositor brega Peninha, para que as castas médias e altas pudessem
admitir gostar de canções que já haviam sido hits populares – respectivamente em
1977 e 1996. Outro choque de estilos como esse havia sido promovido pelo mesmo Caetano
no Festival “Phono 73”, evento da gravadora Phonogram. Ao subir no palco do
Centro de Convenções do Anhembi, em São Paulo, junto de Odair José, Caetano
provocou a fúria e a vaia dos puristas da MPB ao entoar “Eu Vou Tirar Você Desse
Lugar”. Odair José e Caetano Veloso, por sinal, pertenciam a uma mesma
gravadora, mas eram de selos diferentes. O primeiro era da Polydor, divisão popular
da companhia; o segundo, da Philips, a etiqueta nobre daquele grupo
fonográfico – hoje Universal Music.
Para
desespero daqueles que se envergonham da brasilidade em sua forma mais bruta, um
fato a ser digerido: dificilmente a cúpula da Phonogram permitiria que Caetano
fizesse tantos discos experimentais – e pouco vendáveis – na década de 70 se
não houvesse em seu caixa o giro trazido por seus artistas populares. Além de
Odair José: Evaldo Braga, José Ribeiro, Marcus Pitter, Sidney Magal e outros
mais.
Caetano Veloso
proporia ainda novo embate estilístico regravando a dramática “Você Não Me
Ensinou a Te Esquecer” – de Fernando Mendes, José Wilson e Lucas – para a
trilha sonora do filme “Lisbela e o Prisioneiro”, de 2003. A versão de Caetano
renderia louros de público e crítica, além de uma inesperada indicação ao
Grammy Latino na categoria “Melhor Canção Brasileira”, vinte e cinco anos após o
lançamento da canção pelo próprio Fernando Mendes.
Um artista
tido como elitizado e consagrado precisa de uma boa dose de pioneirismo e
vanguardismo para colocar a mão na essência de nossa brasilidade, da qual
muitas vezes nos envergonhamos e queremos esconder embaixo da cama – tal qual
fazíamos com nossas Havaianas até antes de elas se tornarem quase tão nobres
quanto o sapatinho de cristal da Cinderela.
No barco do pioneirismo
de Caetano Veloso embarcariam tantos outros artistas. Adriana Calcanhotto
regravaria “Fico Assim Sem Você” de Claudinho e Buchecha (sic) com grande êxito entre
os mais distintos públicos. Paula Toller e também João Donato fariam suas
versões para “Só Love”, do mesmo duo carioca. Filipe Catto regravaria “Garçom”,
de Reginaldo Rossi, com grande enlevo e erudição. Maria Gadú faria “Baba Baby”,
hit de Kelly Key, virar um clássico blue.
A banda indie Vanguart recém-regravou
“Beijinho no Ombro”, de Valesca Popozuda, também apostando em verter para o
universo cult um hit popular.
Faça esta
experiência, se tiver coragem: promova uma festa, convide alguns amigos metidos e contrate um DJ para tocar o fino das pistas europeias e norte-americanas por
algumas horas. Lá pelas tantas da madrugada, quando todos estiverem sorumbáticos
e fechados em seus nichos, peça ao tal DJ para tocar “Sandra Rosa Madalena”,
com Sidney Magal, ou mesmo “Fogo e Paixão” de Wando. Você verá a brasilidade
desabrochar das almas mais resistentes e contagiar o senso comum de seus nobres
convidados. Sua festa renascerá tal qual uma fênix das cinzas. Garanto! Futucando
bem, acham-se pinguins e bordados de crochê ao redor dos corações de todos os
brasileiros.