quinta-feira, 22 de março de 2012

“Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar”

Interface do Auto-Tune, software da Antares Audio Technologies.
Se o palco é o templo do músico, o estúdio deve ser, no mínimo, seu oratório. A apresentação realizada no palco é o momento de o artista estar em contato com seu público, dialogar, trocar energia viva, bilateral. Já o ambiente laboratorial de um estúdio deve fornecer condições de perpetuar a técnica deste músico, muito mais do que sua emoção. Visa-se, muitas vezes, o registro de uma perfeição que inexiste viva, e que é buscada de maneira incessante quanto mais a tecnologia evolui. Compreensível tal busca se considerarmos que o artista quererá ter a certeza de que sua obra, ainda que intangível, estará bem pintada, nítida, bem emoldurada e bem exposta – numa comparação com as artes visuais tangíveis. É através da reprodução, e não através do original temporal, que grande parte do público terá acesso à obra de um artista.

O show remonta a primária intenção da arte, de cultuar o aqui e o agora, o temporal. Quando registrado em suportes audiovisuais perde valor, como pregam os mais ortodoxos. E tal perda não ocorre somente pelo fim da temporalidade, mas principalmente pelos procedimentos de pasteurização pelos quais passa o material bruto gravado. Aumentam-se frequências, incluem-se outras, filtram-se ruídos acústicos e naturais produzidos espontaneamente pelo corpo: silvos, respirações; elevam-se os sons de aplausos para tornar o registro mais “quente”. A preocupação agora é outra: tornar infalível o falível; tornar o vivo ainda mais vivo através de maiores cargas de tintas – novamente cabendo a comparação com as artes visuais.

Em DVD anexo ao disco “Carioca”, lançado por Chico Buarque em 2006 pela Biscoito Fino, nota-se o músico debatendo com seu técnico de som sobre qual take de gravação soava melhor, estendendo longa discussão sobre a forma com que cada verso fora entoado nas diferentes sessões. Um trabalho de recorte e colagem minucioso resultou na gravação final que se ouve no disco. No caso de Chico Buarque, que é por essência muito mais um compositor do que um cantor, é bastante aceitável que sua voz seja submetida a este tratamento em estúdio. Tais artimanhas são utilizadas por muitos artistas, que o fazem por mero perfeccionismo, por comodismo ou mesmo pela ausência de atributos técnicos. Há ainda os que pregam a plena naturalidade do registro, como a cantora Joyce, que afirma gravar seus discos de forma espontânea e linear, sem intervenções tecnológicas.

O polêmico Auto-Tune, ferramenta para correção de afinação vocal, já foi tema de reflexão de Caetano Veloso em sua “Autotune Autoerótico”, registrada por Gal Costa em seu recente disco “Recanto” (Universal Music):

"Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar
Pelos caminhos que levam à grande beleza"


Como destaca Caetano, as ferramentas tecnológicas para aperfeiçoar o canto não são, portanto, milagrosas e autossuficientes. Os artistas, bem como seus produtores, técnicos e engenheiros de som devem usar de muito bom senso ao lançar mão delas. A ferramenta não deve se sobressair ao operário e tampouco à obra.