domingo, 27 de fevereiro de 2011

Vale Tudo, Qualquer Coisa

O povo brasileiro é certamente um dos mais criativos do mundo – se não for o mais criativo. No país “Onde a gente não tem pra comer / Mas de fome não morre” [in “Eu Vim da Bahia”, Gilberto Gil], a necessidade e a privação instigam ainda mais os que dominam “a arte de viver da fé” [in “Alagados”, Paralamas do Sucesso].

Tal criatividade, já alcunhada de “jeitinho”, é apontada como cultural, tanto por fazer parte de nossa cultura como também por sê-la. Somos capazes de extrair inspiração até do mais improvável. Na arte, especialmente na música, temos inúmeros mestres em tal técnica.

Foto: Roberto Menescal, site oficial.
Roberto Menescal, autor da melodia de “Bye Bye, Brasil”, letrada por Chico Buarque, declarou ter composto o tema a partir do simples dedilhado de um acorde de violão. Feitas as variações harmônicas, criou uma melodia singular. Para “O Barquinho”, parceria com Ronaldo Bôscoli, Menescal criou uma linha melódica a partir do ruído falho do motor de seu barco.

Foto: Carlos Lyra, site oficial.
Décadas depois de composta, soube-se que “Lobo Bobo” – música de Carlos Lyra com letra de Bôscoli – foi assumidamente copiada da trilha do seriado “O Gordo e o Magro”, tendo apenas seu andamento modificado. Questionado em entrevistas, Lyra ainda se gaba e gargalha orgulhoso por seu feito: “...e nunca ninguém percebeu!”

Influenciado pelo concretismo, Djavan possui obra tão diversa quanto rica, tanto em melodia quanto em letra. O movimento surgiu na década de 50, e fora marcado pela abstração lírica, o que bem se percebe nos versos de “Faltando um Pedaço”, do músico alagoano:

Foto: Djavan, site oficial.
“O amor é como um laço / Um passo pr’uma armadilha / Um lobo correndo em círculos / Pra alimentar a matilha / Comparo sua chegada / Com a fuga de uma ilha / Tanto engorda quanto mata / Feito desgosto de filha [...]”.


Vocalizações e sílabas desconexas entremeiam as canções de Djavan, resultando não em mensagens objetivas, mas em sensações, que se dão através de estímulos quase que subliminares da percepção. Na arte de Djavan, o real significado da palavra é elemento secundário. Tom Zé, em seu recente e alternativo disco “Danç-Êh-Sá”, cravejou melodias sincopadas com versos monossilábicos, exponencializando esta peculiaridade.

Foto: Revista Billboard
Há ainda quem privilegie o balanço em suas criações. Em “O Sapo”, a melodia de João Donato recebeu esmerada letra de Caetano Veloso: “Coro de cor, sombra de som de cor de malmequer [...]”. A versão que perdurou, entretanto, leva os versos do próprio Donato: “Corongondon, corongondon gondon / Querenguenden, querenguenden guenden [...]”. Tim Maia, Jorge Benjor, Bebeto e Seu Jorge são, como Donato, personificações do suingue improvisado, marca de nossa música. De escola bossa-novista, João Donato, ao lado de Marcos Valle e Joyce são alguns dos nomes que, com maior erudição, conseguem incrementar tal balanço com refinadas harmonias.

Foto: tropicalia.com.br
Também adepto da divagação lírico-sonora, Gilberto Gil credita muito da sua inventividade à liberdade dos cantos afro-brasileiros. Caetano Veloso transita de maneira igualmente genial entre versos formais, parnasianos, e o despojamento estilístico de qualquer coisa, como bem refere uma de suas canções.

Desapegado de amarras estéticas, nosso som se mostra tão fluente e espontâneo quanto inspirado. Reflete nossa postura, costumes e, sobretudo, nossa capacidade de receber e assimilar o novo.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O Fim da Música?

Imagem:  viuisso.com.br
Em 27 de fevereiro de 2009, o jornalista, produtor, compositor e agregador cultural Nelson Motta proclamava o fim da música. O texto, publicado no jornal O Estado de São Paulo, está para completar dois anos e continua a repercutir.

Motta, em seu biográfico livro “Noites Tropicais”, narra a relação de alguém que viu a Bossa Nova surgir, a Tropicália ecoar, os festivais ferverem, a era discoteca estourar e o “BRock” barbarizar. Trata-se de alguém que produziu discos de Elis Regina, shows de Gal Costa e engendrou o lançamento de Marisa Monte.

Aqueles nostálgicos anos foram marcados por eventos de massa. A maior parte da produção fonográfica vinha das majors, os jornais e revistas eram parcos, o acesso à mídia era restrito. Possuíamos poucas opções de consumo cultural, e por conta disso encontrávamos com maior facilidade uma similaridade com aqueles à nossa volta. A finada era de massas possuía algum caráter agregador.


A publicitária nova-iorquina Faith Popcorn, em seu best-seller “Relatório Popcorn”, escrito no início da década de 90, apontava uma tendência comportamental cuja qual batizou de “encasulamento”. Segundo a autora, por aqueles próximos anos os indivíduos iriam cada vez mais se voltar a si, ao seu casulo.  Naquele remoto 1991, ano da publicação, a internet ainda estava longe de adentrar nossos lares e nosso cotidiano. A vida era ainda presencial, e não virtual. Éramos mais unidos.

Hoje não temos segmentos, mas hipersegmentos. As tendências e vertentes musicais deram crias. Dado o processo de democratização da técnica, citado por Motta, tais crias se reproduzem de maneira acelerada, e perceber influências torna-se algo dificultoso apesar de algumas vezes termos a nítida impressão de que algo soa familiar.

Imagem: Alfa Ana Mia.
Quanto mais temos facilidade no acesso desta vasta gama de produções culturais, mais o liquidificador gira, ou seja, mais rapidamente as assimilamos e descartamos – com a velocidade de se pressionar a tecla “delete”. Torna-se, portanto, ainda mais difícil algo que não seja dotado de imensa qualidade, erudição, técnica e emoção – dentre inúmeros outros fatores, sobretudo os mercadológicos – perpetuar-se como fez a quadragenária “Roda Viva”, de Chico Buarque ou a quinquagenária “Garota de Ipanema”, de Tom e Vinícius. Constatada esta realidade, poderíamos, como consequência, anunciar o fim da música – como fez Nelson Motta? Talvez pudéssemos entender tal cenário como uma ameaça ou simplesmente uma dificuldade em relação à perpetuação dela, o que seria tanto menos assustador, mas também delicado.