quinta-feira, 14 de julho de 2016

O formato ou a arte?

Há algumas semanas entrei numa discussão tão afetiva quanto datada. Augusto Deleuze, proprietário do bar All of Jazz, tentava me convencer sobre a superioridade do CD ante ao LP. Eu, muito embora respeitando as convicções audiófilas de Deleuze, procurava elencar as qualidades do suporte vinílico ante ao espelhado de policarbonato. Daí surgiu um acalorado e divertido diálogo:

[...]
Deleuze: A agulha atrita com o disco, causando desgaste.
Eu: Por isso devemos usar forças de trilhagem baixas. Qual a força que você usa em seu toca-discos?
Deleuze: Sei lá, mas atrito é uma questão de física, oras!
Eu: Som digital não é de fato som, mas uma sequência binária que emula som. Os graves são os maiores prejudicados. O som do vinil é orgânico.
Deleuze: Eu não tenho grana para comprar um toca-discos de trinta mil reais para ter toda essa experiência.
Eu: Hi-end é outra história. Estamos falando de hi-fi, não?
Deleuze: Eu não quero ter preocupação, quero praticidade...
[...]

Dias depois me dei conta do quão datado foi o diálogo que Deleuze e eu tivemos. Aceitável seria se estivéssemos ainda na década de 90, mas incabível em pleno 2016 quando os suportes fonográficos físicos praticamente inexistem. Enquanto gastávamos saliva e argumentos confrontando o vinil contra o policarbonato, os mais antenados e integrados estavam ouvindo um oceano de música através de plataformas virtuais, tais como Deezer, Spotify, Google Music, Apple Music, Mix Radio, Napster, Rdio, Tidal, TuneIn, Xbox Music e mesmo YouTube. Algumas dessas plataformas, por sinal, oferecem música digital com altas taxas de bits, garantindo alta qualidade, além de variedade. Mesmo álbuns raros, indisponíveis em formatos físicos, já podem ser encontrados em tais sistemas – de forma paga ou mesmo gratuitamente.


Prints de tela do aplicativo Google Play: álbuns raros de João Gilberto, Tom Jobim, Leny Andrade e tantos outros.

Fato é que apesar dos tantos meios virtuais para se ouvir música, muitos ouvintes vêm se interessando novamente pelo vinil, inclusive jovens já nascidos no contexto digital – nas décadas de 90 e 2000. E por qual razão? Talvez pela carência de tangibilidade, de algo que ancore esses ouvintes às canções. O excesso de praticidade pode nos ter levado a criar uma relação mais descompromissada com a música.

Ao menos num quesito o LP é inconteste: graves e orgânicos à parte, a experiência tátil e visual do vinil é absurdamente mais intensa do que aquela oferecida por um CD ou qualquer outro suporte virtual.

A relação entre obra e suporte, por sinal, foi tema recorrente de obras filosóficas e sociológicas da Escola de Frankfurt. Theodor Adorno, um de seus representantes, muito versou sobre o assunto a partir da década de 30, momento em que várias artes se tornaram multiplicáveis através de tecnologias de replicação. Destaque-se ainda que os critérios para escolha do meio ideal para se ouvir música são idiossincráticos e talvez mais emocionais do que racionais.

Se Deleuze e eu discordamos no formato, compactuamos nos estilos musicais:

[...]
Deleuze: Conhece este aqui, da Elizete?
Eu: Sim, é o “Canção do Amor Demais”! “As praias desertas continuam...”, cantarolo.
Deleuze: Você conhece!?
Eu: Claro, João Gilberto está neste disco ao violão! O primeiro registro de sua batida “bossa-nova”...
Deleuze: E este aqui, da Leny Andrade, conhece?
Eu: Sim, tenho muitas coisas da Leny...
[...]

Seja em vinil, em policarbonato, em streaming ou mp3: independentemente do suporte que se escolha, o que vale é saber apreciar a boa arte.